A animação, o culto da liberdade, a tolerância, o dinamismo, a tradição e o progresso, são tantos os atributos de Amesterdão que muitos deles passam despercebidos ao viajante menos atento. Uma cidade cosmopolita, rebelde e tímida, alegre e melancólica, adepta das bicicletas e dos transportes públicos,
amiga íntima da natureza, abundante em água mas moderada no consumo e com um desperdício sem expressão face à média europeia. Tudo para a colocar, de acordo com os rankings de várias publicações, como uma das mais inteligentes do mundo.
Por Sousa Ribeiro
– O 1, o 2 ou o 5, qualquer um deles. Mas, se quiser, pode acompanhar-me, também vou para Leidseplein.
Lanço um olhar à Central Station, centro nevrálgico do transporte público de Amesterdão e obra do século passado do arquiteto Pieter Cuypers (autor do
edifício do Rijksmuseum), e sigo os passos de Colinda van Diepen, uma jovem de sorriso fácil que, à primeira vista, comparo com os clichés que escuto ou leio
sobre a cidade que me acolhe: alegre, dinâmica, estimulante e hospitaleira.
Sentado, com uma ampla janela à minha esquerda servindo de moldura, deixo-me embalar pelo suave contorcer do elétrico e vou pousando olhares nas estreitas
fachadas das suas casas de tijolo vermelho refletindo-se no espelho das águas. Amesterdão, com pouco mais de 700 mil habitantes, cresceu nas margens dos rios Ij e Amstel, sobre mais de uma centena de ilhotas de areias movediças ligadas por cerca de 500 pontes.
– Não gosto de viver em cidades mas se tivesse de escolher uma, não tenho dúvidas de que seria Amsterdão.
Desprego os olhos do conjunto arquitetónico que, num dos extremos, enche a Dam Square. De um lado, o Palácio Real (Koninklijk Paleis), erguido no século XVII, em plena Idade do Ouro holandesa; do outro, a Igreja Nova (Nieuwe Kerk), palco de coroação dos monarcas desde 1841 e aberta ao público como centro cultural.

Não resisto a perguntar porquê?
E Colinda van Diepen responde sem hesitações:
– É uma cidade onde se sente alegria de viver, liberal, tolerante, um casamento perfeito entre tradição e progresso. Amesterdão tem múltiplas facetas que
variam consoante o clima. Num dia de sol como este, mostra a sua cara mais risonha.
Eu próprio não deixo de sorrir perante a afirmação antes de me focar em aspetos que não são observáveis desde a minha janela. Sob estas ruas, a esta hora ainda
um pouco desertas, repousam milhares de troncos importados da Suécia e de países bálticos que garantem a firmeza  do betão dos edifícios. Sobre a minha esquerda, tendo como fundo a imponente fachada do histórico hotel Krasnapolsky, um obelisco com estátuas recorta-se no centro da praça, prestando tributo aos
mortos durante a II Guerra Mundial. Mas, uma vez mais, a moldura do elétrico não deixa ver tudo – foi precisamente na Dam Square que, no século XII, se construiu um dique (dam) sobre o rio Amstel que esteve na origem do nome da cidade.
Após deixar para trás a antiga central dos correios, na Nieuwezijds Voorburgwal, e até chegar a Leidseplein, o mais animado centro da vida noturna da capital, o que se perde em monumentalidade ganha-se em encanto. As obras grandiosas de um tempo grandioso dão lugar aos detalhes e, a pouco e pouco, o viajante sente-se invadido por uma tranquilidade ordeira que o seduz e fascina, como se fosse transportado para os pequenos mundos do mundo. Não muito distante
da agitada Kalverstraat, o Begijnhof é um dos melhores exemplos de serenidade, com o seu amplio pátio rodeado de pequenas casas bem cuidadas e o seu
jardim arborizado onde os pássaros chilreiam sem cessar. Fundado em 1346 por um grupo de mulheres que aspiravam a viver em comunidade religiosa, o Begijnhof abriga também a casa mais antiga de Amesterdão, a única de madeira que sobreviveu ao fatídico incêndio de 1521.

O elétrico prossegue a sua marcha, as bicicletas cruzam as ruas empedradas e gastas, os barcos rasgam docilmente as águas dos canais e os transeuntes vivem
as suas vidas.

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– As melhores zonas para viver são o Jordaan e a área denominada Grachtengordel, a cintura de canais. Mas a qualidade de vida tem equivalência nos preços das casas. A meio da tarde, sob um sol radioso, erro por estas artérias onde se respira serenidade e identifico-me com a sua história.
Resultado de um ambicioso plano idealizado por Hendrick Staes no início do século XII, o Grachtengordel simboliza a primeira grande expansão da cidade,
com a construção dos seus três principais canais, Herengracht, Keizersgracht e Prinsengracht. Os trabalhos decorreram por fases e as diversas etapas são visíveis na arquitetura, ora exibindo vivendas aristocráticas, ora alojamentos da classe média; nas águas calmas, à sombra de árvores seculares, repousam barcos-vivendas, profusamente decorados com flores e pintados de cores sóbrias. Mais buliçosas mas não menos encantadoras são as Nove Pequenas Ruas, assim denominadas desde 1990 e integradas recentemente na lista de Património Mundial da Humanidade da Unesco. Construções dos séculos XVII, XVIII e XIX acolhem mais de 200 lojas que, excetuando a diferença da oferta, já assumiam essa vocação na época em que os grandes mercadores começaram a erguer as suas sumptuosas residências nas margens dos grandes canais.
A bicicleta e a água
Numa cidade em que mais de 50 por cento da população utiliza diariamente a bicicleta ou os transportes públicos para se deslocar, não surpreende que surja bem
cotada entre as mais verdes da Europa, ao lado de Copenhaga, Estocolmo, Oslo ou Viena. Amesterdão contabiliza mais de meio milhão de bicicletas e,  confrontado com o défice de locais de estacionamento, o município local decidiu investir já este ano cerca de 90 milhões de euros em parques, alguns deles contemplando oficinas de reparações. Ao mesmo tempo, os ciclistas passam a dispor de mais tempo para atravessarem as ruas nos semáforos, uma medida que visa um melhor escoamento do tráfego e um forte incremento na segurança rodoviária.

– Em algumas zonas, a circulação pode ser penosa mas no centro há um grande número de ruas pedonais e não é muito difícil encontrar um espaço verde para
desfrutar o sol, um bom livro e o silêncio.
Depois de uma visita ao Rijksmuseum, de novo aberto ao público após profunda renovação, caminho na direção do Vondelpark, toponímia que homenageia o
poeta dramático holandês Joost van den Vondel, conhecido como o «Shakespeare holandês». Crianças brincam sob o olhar pouco atento dos pais, seguindo o lema tão característico de Amesterdão «viver e deixar viver», casais apaixonados estendem-se na relva viçosa e o sol atinge com os seus raios tépidos as águas dos
canais, alguns deles cruzados por admiráveis pontes de madeira; aqui e acolá, um restaurante ou um café, mais para lá um teatro ao ar livre onde são frequentes
espetáculos gratuitos de dança e de música entre quartas e domingos, uma estátua oferecida por Picasso em 1965 e até um museu cinematográfico – razões
mais do que suficientes para passar umas horas numa área de lazer que é visitada anualmente por dez milhões de pessoas.

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Embora situado mais próximo de Amstelveen, o Bosque de Amesterdão é gerido pelo município da capital e, a despeito de ser menos frequentado do que o Vondelpark, é o verdadeiro pulmão da cidade, ocupando uma área que é três vezes superior ao Central Park, em Nova Iorque.

Na verdade, com uma extensão superior a 1000 m2, o Amsterdams Bos é o lugar ideal para quem busca um pouco de paz, um paraíso para os amantes da natureza e um território com uma história singular que se mantém fiel ao projeto delineado em 1920 para o então designado Boschplan.

São quase 140 quilómetros de trilhos, mais de 50 para bicicletas, meia centena de pontes, distintos trajetos que levam o viandante ao encontro de algumas
das 200 espécies de pássaros que vivem nesta floresta e de 150 árvores indígenas, resultado de um trabalho com contornos dramáticos – foram plantadas,
na sua grande maioria, entre 1934 e 1939, nos anos de crise, garantindo trabalho a mais de 20 mil desempregados.

A noite tomba e as luzes, brilhando, caem sobre as águas dos canais. Poucas cidades no mundo têm uma relação tão íntima com a água como Amesterdão e,
de uma forma geral, os holandeses. A personificação de um casamento feliz e de respeito mútuo que leva os seus habitantes aos lugares cimeiros das tabelas
oficiais das cidades sustentáveis já que, não obstante a abundância, é reduzida a quantidade de água consumida. Com efeito, o consumo por ano não ultrapassa
uma média de 53 metros cúbicos por habitante, contra os 103 de algumas das cidades avaliadas, e apenas com um desperdício de 3,5 por cento, muito distante
da média de 22,6 observada em outras 29 urbes.

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A Estação Central recebe-me na sua grandiosidade, revelando a cidade cosmopolita enquanto engole milhares de pessoas desejosas de regressarem as
suas casas. Olho à volta como se fosse possível reencontrar Colinda van Diepen no meio deste formigueiro humano e, fitando sem ver um placard eletrónico,
dou por mim a pensar que, mesmo não gostando de viver em cidades, Amesterdão seria a minha eleita caso me fosse proporcionada escolha múltipla. Para viver
e deixar viver.

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