O tempo parece deter-se em McLeod Ganj, sede do governo tibetano no exílio e do Dalai Lama. Mas para trás já ficaram 55 anos desde que o homem que nasceu Tenzin Gyatso, na aldeia de Admo, chegou a este lugar sereno da Índia, seguido, ao longo dos anos, por 80 mil compatriotas que, como ele, fugiam das perseguições e apenas desejavam viver as suas vidas, sem a influência, a tortura e a violência chinesas.
Tinha apenas quatro anos e meio quando deixei o Tibete. O meu pai fez-me prometer que nada contaria à minha mãe sobre a partida. Em troca, teria direito a um brinquedo. Mas na minha aldeia não havia nada. Estávamos em 1981.
Dorjee, hoje com 37 anos, olha os ladrilhos como se neles se refletisse a sua existência traumática. Mais para cima, como vindos da abóbada do mundo tão azul, chegam murmúrios indecifráveis que ressoam como um eco, repercutindo-se pelo verde viçoso da paisagem envolvente.
Todas as manhãs, a esta hora, os peregrinos acorrem a Tsuglagkhang, alguns deles convencidos de que estão em Dharamsala quando, na verdade, percorrem os caminhos de McLeod Ganj, quatro quilómetros mais acima, dez se optar pela estrada onde me deixa o autocarro.
– Nunca mais os vi, nem o meu pai nem a minha mãe. Mas sei que ainda estão vivos.
McLeod Ganj, assim designada por via da presença de David McLeod, governador-tenente do Punjab, foi fundada em 1850 como guarnição do Império Britânico, servindo como centro administrativo do governo colonizador até ao terramoto de 1905. Até 1959, permaneceu como um lugar afastado do mundo, altura em que todos os olhares se centraram na aldeia situada a mais de 1700 metros de altitude, com a chegada de Dalai Lama, em busca de asilo político na sequência da invasão chinesa do Tibete. Desde então, McLeod Ganj transformou-se em centro de estudos do budismo e da cultura tibetana, proporcionando uma série de atividades holísticas e uma multiplicidade de cursos que atraem grande número de voluntários dispostos a colaborar, a troco de quase nada, em projetos comunitários que se focam na extensa comunidade de refugiados.
– Foram semanas terríveis, sob fortes tempestades, pouco agasalhados, sem dinheiro. O Complexo de Tsuglagkhang, humilde na sua aparência, é rico em história e um lugar onde o silêncio convida a prolongar a visita, vagueando pausadamente até ir ao encontro da sumptuosa estátua do Buddha Sakyamuni, ladeada por Avalokitesvara e Padmasambhava, os dois estudantes indianos que introduziram o budismo no Tibete. A religião, praticada por 500 milhões de pessoas, é uma forma de entender a vida e a sua herança, uma das mais antigas do mundo, baseia-se no amor, na compaixão e na ausência de violência física e mental perante os outros seres humanos.
– Do Tibete, viajei até ao Nepal e daí, com amigos do meu pai, até à Índia.
A curta distância de Tsuglagkhang, sempre cheio de vida, com os seus fiéis obedecendo ao ritual do circuito, a kora – caminhando no sentido dos ponteiros do relógio -, fica situado o Templo de Kalachakra. Erguido em 1992, contém impressionantes murais de mandala Kalachakra (Roda do Tempo), especialmente associados a Avalokitesvara, atualmente representado na terra pelo Dalai Lama.
– Comigo, havia outras três crianças. Hoje, quando olho para trás, ainda me custa a acreditar como fui capaz de vencer tantos obstáculos, a fome, as condições climatéricas, as longas caminhadas, a ausência da minha família.
Prémio Nobel da Paz em 1989, Tenzin Gyatso, mundialmente conhecido como Dalai Lama, nasceu na aldeia de Amdo, no Tibete Oriental, em 1935 e, dois anos mais tarde, foi reconhecido como a reencarnação dos seus 13 predecessores.
Com apenas 24 anos, partiu, seguido, ao longo dos anos, por 80 mil compatriotas, para o seu exílio em McLeod Ganj, escapando desta forma das constantes perseguições de que eram vítimas.
– Por vezes, durante o dia inteiro, não havia mais do que uma maçã para dividirmos entre os três. Ainda dentro do complexo, o Museu do Tibete é de visita obrigatória, uma viagem aterradora que retrata a história trágica da ocupação chinesa e do subsequente êxodo dos tibetanos, através de fotografias, entrevistas e vídeos, situações desesperantes que, de uma forma ou de outra, entroncam na experiência de Gorjee.
– Fui acolhido na TCV, a Tibet Children Village, em Pathankot, mas tive de ir direto para o hospital.
Não tinha, depois de uma viagem tão longa, mal alimentado, um pingo de energia. Por ali fiquei uns seis meses, convivendo com crianças que, tal como eu, haviam perdido os pais.
O mosteiro de Tsechokling, onde continuo a escutar as memórias de Dorjee, foi originalmente construído no século XVIII, na aldeia de Dip, três quilómetros a sul de Lhasa, por Yongzin Yeshi Gyaltsen, tutor do 8.º Dalai Lama. A partir de 1959, com a destruição de 6000 mil templos, levada a cabo pelo exército chinês, somente cinco ou seis monges de Tsechokling, também arrasado, conseguiram escapar a tempo, enquanto mais de 70 foram enviados para campos de trabalho,
detidos ou forçados a integrar projetos de construção de novas estradas – e apenas quatro sobreviveram às duras condições impostas pelo povo invasor.
– Cheguei ao mosteiro em 1993. Aqui vivo feliz, muito feliz, faço o que quero: leio e rezo. Mas não há um dia que passe sem que pense nas imolações, no medo instalado no Tibete, na falta de liberdade e de respeito pelos Direitos Humanos.
Em 1976, após 16 anos em Katmandu, no Nepal, em fuga da opressão chinesa, Lama Tashi, um dos mais ativos monges no mosteiro de Samtenling, no Tibete, chegou a Dharamsala acompanhado do seu principal discípulo, Pema Lama (Thupten Nyandak), com a intenção de reconstruir o Tsechokling no exílio, um projeto ao qual se associaram, além dos dois já referidos, três jovens monges. No início, o mosteiro não passava de uma modesta cabina em madeira, em Rishi Bhawan, na parte alta (ainda mais alta) de McLeod Ganj mas a exorbitância pedida, a cada ano que passava, pela renda levou o pequeno grupo a considerar a hipótese de construir o seu próprio mosteiro, o qual viu a luz do dia em 1987, após três anos de trabalhos, numa cerimónia presidida pelo próprio Dalai Lama,
que vive 300 metros acima, no topo da colina.
– Só em 2008, ao fim de tantos anos, voltei a ter contacto com a minha família. Ao telefone, não mais fazíamos do que chorar, o meu pai, a minha mãe e eu.
Um monge mais novo, de sorriso fácil, sobe, acompanhado de dois ainda mais jovens, as escadas frias onde Gorjee e eu estamos sentados.
As crianças carregam o pequeno-almoço para os monges mais velhos que, por agora, se limitam a rezar em volta da estátua de Sakyamuni, na fronteira entre o silêncio e o murmúrio. Gorjee teima em não levantar a cabeça mas não me impede de ver uma das suas lágrimas cair nos ladrilhos lavados mal a alvorada se insinuou.
– Eu esquecera a minha língua. Abandonara o Tibete quando ainda não tinha completado cinco anos. Não percebia nada do que me diziam. E eles também nada entendiam do que, em vão, lhes tentava contar.
Em busca de serenidade, eu optara por ficar alojado em Dharamkot, três quilómetros a norte de McLeod Ganj, sempre a subir ao longo de uma estrada de terra batida bodejada por pinheiros que, de quando em vez, deixam ver as fachadas das casas que assumem o aspeto de um presépio e por onde os macacos gostam de se passear, roubando tudo o que lhes aparece pela frente. Chegado ao topo, um caminho de cimento conduz-me até às profundezas e por ali fico, ouvindo apenas o silêncio, o chilreio de um ou outro pássaro, bebendo água das suas fontes e protegido pela montanha sagrada com os seus cumes nevados, a Dhauladhar que espraia a sua sombra sobre o Kangra Valley, almoçando e jantando em restaurantes vegetarianos, conversando com este e aquele, muitos deles, na sua maioria estrangeiros, falando sobre as suas experiências em cursos de ioga, sobre este modo tão simples e com resultados tão felizes de encarar a vida.
– Desejo muito regressar um dia ao Tibete.
Só nessa altura, como se sentisse vergonha da sua história de vida, Gorjee levantou a cabeça na minha direção. Tinha lágrimas nos olhos mas daquele olhar emanava um brilho, um brilho de esperança.
Uma ave negra, batendo as asas, riscou o céu azul nesse preciso momento. É assim, em liberdade, que Gorjee gostaria de ver o Tibete.
– Mas não é fácil ser tibetano no Tibete.
Por Sousa Ribeiro (texto e fotos)
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