No mês em que se celebra o Dia Internacional da Mulher (8 de março), uma incursão pela Isla Mujeres , no México , tão próxima e ao mesmo tempo tão distante de Cancún, um recanto pintado de tons de azul que se consagrava a Ixchel e onde os espanhóis , em busca de escravos , encontraram tantas estátuas femininas que não perderam parte significativa das suas vidas com a toponímia.
Por Sousa Ribeiro

Um sentimento de alívio, quase insano, preenchia todo o meu ser quando o barco, embalado pelas ondas, começou a sulcar as águas da baía, deixando para trás um rasto de espuma e os edifícios, a maior parte deles inestéticos, de Cancún. Na memória, como lapas presas aos rochedos, ainda se desenhavam grupos de turistas de pulseiras nos braços, vestidos como se, por força de um qualquer imprevisto, o avião que os transportava resolvesse fazer uma escala no estado de Quintana Roo a caminho do Hawai – camisas e calções de padrões irreais, como arco-íris ambulantes, logótipos de cadeias de comida rápida tatuados em cabeças lisas como ovos, toda uma fauna apressada e ruidosa deambulando pela sala de pequeno-almoço com pratos que rapidamente se enchiam e adquiriam formas semelhantes a ruínas maias e, na outra mão, um copo de uma bebida gaseificada, àquela hora da manhã, capaz de provocar arrotos que alguns não se incomodavam em conter.
A despeito do barulho do motor, aqui e acolá ainda conseguia ouvir a música que me oferecia – a mim e a outros passageiros – a Rádio Turquesa, feliz designação no meio deste mar que tantas tonalidades de azul proporciona, uma beleza infinita que me obriga a fitá-la e que, ao mesmo tempo, ajuda a esquecer a estranha realidade que, vista dali, àquela distância, já não é mais do que uma miragem. De Cancún, a pequena embarcação dirige-se para a costa leste da ilha que me vai adotar nos próximos dias e onde, mal lanço o primeiro olhar – e, logo de seguida, o primeiro pé -, sinto que acabo de entrar num outro mundo, deixando-me seduzir por um lugar que, pelo menos à primeira vista, me parece ser um reduto de paz, com as suas águas cristalinas que materializam os sonhos tropicais de viandantes.
A Avenida Hidalgo, a mais concorrida das artérias da Isla Mujeres, atravessa-se, mais cedo ou mais tarde, no caminho do viajante e funciona como cenário privilegiado para exacerbar a ideia de um recanto que, a despeito de estar situado a escassos 30 minutos de Cancún, mais parece, perante a quietude que se respira, distar milhares de quilómetros desse lugar tão profundamente enraizado nos sonhos de muitos turistas, indiferentes ao facto de não poderem mergulhar
nas águas agitadas do mar e felizes por poderem fazê-lo numa piscina onde se produzem ruídos que abafam as vagas, vozes que sobem no ar com a sonoridade grave de um vendedor numa feira – e, mais gratos ainda, porque sabem que, mesmo sem apetite, aquela pulseira de uma cor berrante que ostentam com orgulho no pulso lhes dá acesso a comer quatro ou cinco vezes por dia.

Na Avenida Hidalgo os sons são outros, a arrogância dos turistas dá lugar à humildade dos locais, o mau humor daqueles é substituído pelos sorrisos e expressões dóceis dos vendedores, de olhos postos nas laranjas que vão descascando e cortando sem pressas antes de as colocarem, já às rodelas, em pequenos sacos plásticos transparentes que vendem a quem passa, sejam mexicanos ou estrangeiros.

De quando em vez, deitam um olhar para a rua, ao encontro de uma bicicleta, de uma motorizada ou de um carrinho de golfe que, por instantes, quebram a rotina e o silêncio, rasgando as ruas não raras vezes impregnadas de solidão.
Estou já há alguns segundos junto ao balcão da receção do modesto hotel mas a jovem continua a não dar pela minha presença. Está sentada, de costas para mim, por momentos admito que terá adormecido, mas não, tem os olhos plantados na televisão, numa telenovela mexicana que a prende como se de um magnetismo se tratasse. Finalmente, vira-se na minha direção, sorridente, mas com todos os sentidos postos naquela caixa negra que se posiciona por cima da sua cabeça.

– Esta é muito interessante, ainda não perdi um episódio.
Estátuas em vez de escravos A Isla Mujeres não é, em termos geográficos, mais do que uma tira que se estende ao longo de oito quilómetros e com uma largura que não ultrapassa os 500 metros. Mas, embora minúscula, esta ilha do Golfo do México está repleta de histórias de piratas e de mitos maias – ou de anedotas.
– Era aqui que os corsários deixavam as suas amantes enquanto saqueavam os galeões – conta, com um rosto emoldurado por um sorriso que se transforma em gargalhada, um dos empregados do pequeno restaurante onde gosto de me sentar, vendo o mundo passar, lentamente, à minha frente.
Na verdade, uma versão menos romântica recorda as origens da ilha e é necessário recuar quase 500 anos, até 1517, para perceber a sua toponímia. Nesse ano, Francisco Hernández de Córdova, conquistador espanhol ligado à história por força da acidentada expedição que dirigiu entre fevereiro e maio e que levou à descoberta da Província de Yucatán, desembarcou naquela língua de   areia à procura de escravos para as plantações em Cuba mas tudo o que se lhe deparou
foi um conjunto de estátuas femininas em barro – e, inspirado por essa imagem, decidiu batizar o lugar como Isla Mujeres.

O que Francisco Hernández de Córdova desconhecia é que a ilha estava consagrada a Ixchel, a deusa maia do amor, da fertilidade – em algumas situações era representada na companhia de um coelho -, da medicina e da lua, um vasto domínio tão intimamente ligado e que estimulava os crentes a deixarem as suas oferendas, na forma de ícones femininos espalhados ao longo das praias.

Para as mulheres desta civilização, uma peregrinação à Isla Mujeres (ou à vizinha Cozumel, também associada a Ixchel) era considerada uma etapa importante na sua passagem à idade adulta e, ainda hoje – apesar dos danos provocados pelo Gilbert, furacão que afetou a região em 1988 – se podem ver, no extremo sul da ilha, onde a largura não chega aos 300 metros, vestígios de um templo dedicado à deusa.
É um lugar mágico, perfeito para um final de tarde sereno, vendo o sol mergulhar, como uma bola de fogo, nas águas agora douradas, o dia dando lugar à noite, cheia de estrelas, a luz natural concedendo o seu espaço ao farol que se ergue imponente e ao qual se chega depois de serpentear pelo meio de pequenas casas de madeira, de um só piso, que exibem fortes tonalidades como que anunciando outras tantas, de matiz azul, que, como num quadro, pintam o mar. Esta parte da ilha é de tal forma apaziguadora de espírito que, na manhã seguinte, mal o dia se insinua, deixo os passos conduzirem-me de regresso, ao longo da pitoresca estrada de Rueda Medina, bordejando, mais à frente, mal se deixa o centro, a Salina Grande, um lago de água salgada de grandes dimensões mas que parece bem mais pequeno quando comparado com a Lagoa Makax, mais a sul e na antecâmara de praias órfãs de turistas, como a do Pescador, dos Lancheros ou dos Índios, com as suas aldeias de pescadores, a esta hora tão silentes.
Em poucos minutos, acerco-me de outra extensão de areia, a Playa Garrafón, que também designa um parque nacional, tão do agrado dos submarinistas que nunca se cansam de mergulhar nas suas águas que acolhem milhares de peixes de múltiplas cores e que, sem receio, se aproximam, quase tão curiosos como os turistas, à espera de serem alimentados. Embora sendo a mais próxima, a barreira de coral de Manchones não é a única, há outras, não menos sedutoras,
como a Bandera, a Barracuda e a de Jigueo, sem esquecer a Cueva de los Tiburones Dormidos, onde se chega, de lancha, em menos de meia hora.

A gruta dos tubarões adormecidos foi descoberta na década de 1970 por Carlos García Castilla, um pescador da Isla Mujeres alcunhado de Válvula pela facilidade com que permanecia, durante longos períodos, mais de 20 metros abaixo da superfície das águas. Quando, como em tantos outros dias ao longo do ano, se dedicava à captura de chernes e lagostas, Carlos García Castilla introduziu-se numa gruta e, verdadeiramente extasiado, observou a presença de um conjunto de esqualos no leito marinho, imóveis, como se estivessem a dormir e que, inclusive, se deixavam tocar sem esboçar qualquer reação.
O mergulhador, confrontado com tão estranha aparição – durante muitos anos, a comunidade científica entendia que os tubarões, carecendo de bexiga-natatória, deveriam permanecer despertos permanentemente –, não perdeu muito tempo a contactar Ramón Bravo, famoso oceanógrafo mexicano que, de início, se mostrou cético (porque também ele acreditava que os tubarões tinham de estar sempre a nadar ou em movimento) e mais ficou quando, após quatro ou cinco incursões ao local assinalado pelo pescador, não encontrou um único exemplar. E, enquanto pensava tratar-se de tubarões gato, espécie que tem a faculdade de descansar por ter um metabolismo mais lento, finalmente, numa viagem que já se começava a tornar rotineira, ambos descobriram, numa gruta chamada La Puente, devido à sua altura inusitada, aquilo que tanto procuravam e que logo os fascinou.
Ramón Bravo identificou quatro tipos de tubarão em estado de quase hibernação, como se realmente estivessem a dormir e, com a mesma rapidez com que foi informado da descoberta por Válvula, logo tratou de difundir a notícia, colocando definitivamente a Isla Mujeres na rota de todos os eruditos na matéria, incluindo a bióloga Eugenie Clark – conhecida como A Mulher Tubarão – que, com o apoio da National Geographic Society e acompanhada de alguns assistentes, chegou à Isla Mujeres em 1972 para estudar um fenómeno improcedente.
Eugenie Clark, nascida em 1922, em Nova Iorque, chegou à conclusão que a presença dos tubarões nas grutas se devia aos altos e invulgares índices de oxigénio registados e à escassa salinidade (aparentemente por ali desaguar água doce), facilitando a respiração e, ao mesmo tempo, produzindo um efeito narcótico que era do agrado dos esqualos.

Durante um período, os tubarões deixaram de ser avistados mas, há uns anos a esta parte, foram de novo descobertos, numa outra gruta, a 60 metros de  profundidade, a umas duas milhas da costa de Cancún, num dos polígonos do Parque Marinho Nacional Costa Ocidental da Isla Mujeres – Punta Cancún – Punta Nizúc, uma área protegida onde os turistas apenas os podem observar mas sem os molestar.
Com ou sem tubarões, a Isla Mujeres não perde o seu encanto e permanece como um lugar do agrado das crianças, das famílias e de viajantes aventureiros (quem a visita desde Cancún regressa ao fim do dia e a ilha volta a estar envolta numa aura de serenidade). Os mais novos – mas não só – sentir-se-ão particularmente atraídos pela Tortugranja, uma quinta que é igualmente uma fundação criada, na década de 1980, para preservar a tartaruga gigante, cuja carne é tão apreciada na costa maia e, por isso mesmo, tendia a desaparecer.

Com sede em Sac Bajo, na costa ocidental da ilha, a Tortugranja responsabiliza-se pela recolha dos ovos que os galápagos põem na areia entre os meses de maio e de setembro e protege-os dos predadores. Quando as tartarugas nascem, são instaladas em grandes
aquários para evitar que morram durante o primeiro ano de vida, altura em que são mais vulneráveis e, mais tarde, são conduzidas ao mar – e, talvez como forma de gratidão, regressam todos os anos ao local onde nasceram para desovar.
Não tarda, o sol volta a pôr-se sobre as águas mas ainda antes que o dia se extinga, passo pela Hacienda Mundaca, construída (é um bom exemplo da arquitetura colonial de meados do século XIX) por um pirata espanhol com pedras provenientes do Templo de Ixchel para impressionar a sua amada, conhecida como La Trigueña (a morena).
Reza a lenda que a indígena nunca correspondeu ao amor que lhe dedicava Fermín Antonio Mundaca. Talvez, sem o saber, tenha conferido, com essa recusa ou através dessa manifestação de caráter, mais poder às mulheres da… Isla Mujeres.

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